Belo Horizonte, 3 de abril de 2005 (domingo) – 14:46
Exausto, procurou a sarjeta que, ainda úmida, lhe pareceu o lugar mais aconchegante do mundo. Colocou o travesseiro no chão, junto com a esteira, enrolada. Sentou-se, cuspiu nas mãos e, com a própria saliva, lustrou os sapatos que acabara de encontrar.
Calçados nos pés encarquilhados, haviam servido perfeitamente. Deviam ter pertencido a um sapateador, já que se podiam ver, nas solas, as gastas placas de metal pregadas às pontas e calcanhares. Teria ele abandonado a carreira e desistido de dançar? Pensou. Os sapatos, embora desgastados, ainda estavam em perfeito estado.
Sentindo que o cansaço lhe tomava, colocou os pés sobre o travesseiro, enquanto se deitava lentamente. Ignorou a gelidez do chão, e facilmente adormeceu.
De repente, seus ouvidos começaram a captar ao longe um mavioso canto que parecia surgir do horizonte, mas era como se o ouvisse dentro de sua própria cabeça, retumbando no coração.
Foi abrindo lentamente os olhos, a música se aproximando. Percebeu que uma claridade surgia ao longe, expandindo-se lenta e rapidamente à medida que avançava uma tropa de seres celestiais, vindo na sua direção. No meio deles, um príncipe vestido de branco e escarlate fazia nascer flores pelo caminho onde passava.
Levantou-se, de súbito, desenrolando a esteira qual um tapete vermelho e colocando o travesseiro em sua extremidade, à guisa de um trono. O príncipe se aproximava e ele, já de pé, respeitosamente, deu-lhe um abraço amigo e o conduziu pelo tapiz, fazendo-o sentar-se.
Fixando-se ao lado daquela figura singular, notou que o estranho estava descalço e, então, tirando os sapatos, calçou-os nos pés do forasteiro.
À sua volta, já não via mais a rua escura, os becos desertos, mas um dia primaveril e belo. O príncipe se levantou e, feito isso, crianças começaram a surgir das ruas, vielas e casas. Notou que a voz que lhe acalentava vinha daquele homem que, unido às crianças, começou a cantar ainda mais alto, sua voz misturando-se às de vários pequenos que dançavam ao seu redor, numa alegria quase infinita.
Durante toda a noite, a festa prosseguiu, e ele pôde experimentar daquela felicidade interminável, que em toda a sua vida nunca havia tido oportunidade de conhecer. As crianças cantavam, aquele ser quase divino lhe sorria, insuflando-lhe as mais puras esperanças.
Encostou-se no trono e fechou lentamente os olhos, ouvindo, ouvindo, ouvindo, até que a suavidade das notas foi se transformando em bálsamo e ele, novamente, adormeceu.
03/04/2005 – 15:09
Não sei porque, mas este sonho me lembrou a estadia de Margana na terra das fadas…
Beijos!